domingo, 26 de outubro de 2008

capítulo 3

Quem não era muito adepto do café na Travessa Anselmo de Braancamp era Barão Vermelho. O solitário homem, que de resto vivia numa enorme casa na Avenida dos Combatentes, mas sozinho, preferia o café Bom Dia na Praça Velasquez, onde se sentava, ou na esplanada ou no aquário, com o seu cachimbo, sempre debruçado sobre papéis, num secretismo que nos impede de lhes revelar a natureza.
De resto, estava sozinho durante toda a hora de almoço, ainda que não poucas vezes a tão simpática Dona Pranto se tivesse oferecido para o acompanhar, companhia da qual muito cortesmente ele se soube descartar em cada vez. Mas apenas porque a hora das refeições era para ele uma comunhão consigo próprio, pelo que preferia estar sozinho.
Alias, se, de volta ao café em Anselmo de Braancamp, nos focarmos na conversa que se desenrola ainda na mesa dos Doutores e das Veteraníssimas, podemos ouvi-los falar sobre os hábitos e companhias de Barão Vermelho.
Antes de prosseguir, devo explicar, para os que eventualmente não saibam, que em Vila Real de Trás-os-Montes, a palavra "fados" designa muitas vezes borga.
Posto isto, quando ouvimos Veteraníssima Von Ingres a dizer que era frequente que Dona Pranto arrastasse Barão Vermelho para fados, devemos entender que ela se refere não só ao acto de cantar o fado, mas também à borga.
Inicialmente, Dona Pranto levava Barão Vermelho a algumas casas ou festas de fados, onde se sentavam em frente a copos de cerveja e tremoços ou amendoins, ouvindo as belíssimas vozes entoar a dor. Só a custa de muito esforço o coração do nosso Barão não rebentava em lágrimas, passando-se o contrário com Dona Pranto, cujos olhos se inundavam de lágrimas logo às primeiras guitarradas.
Mas depois dos fados propriamente ditos, começaram as idas aos bares e a certas discotecas mais snobes, em que a barriga proeminente de Barão Vermelho não tinha complexos em dançar roçando o corpo de Dona Pranto, isto estando ambos um tanto tocados pelas bebidas. O que também começou foi o aspecto ensonado com que frequentemente o presidente anda todo o dia, e que as Veteraníssimas, pela perspicácia da observação há muito aprenderam a discernir. Neste dias vale-lhe a compreensão e a paciência de Prior Pepsodent, o seu acessor, que, à custa de muita hipocrisia e de muitos fretes conseguiu caír nas graças de Barão Vermelho, que é como quem diz que caiu direitinho do Reino de Deus. Este Pior é um homem particularmente solitário, árido até, que usa um sorriso como quem usa boxeurs, mesmo que esteja a tecer os mais desagradáveis comentários imagináveis.
Mas, se estamos a falar das graças em que Prior Pepsodent caíra, as de Barão Vermelho nem por sombras se comparam às de Dona Calores. Esta hipertérmica Mulher-a-Dias apaixonara-se por Prior Pepsodent quase à primeira vista. Os atributos físicos do homem, o seu discurso ou a sua inteligência não são factores que nos ajudem a perceber esta paixão, dado os seus níveis estarem em todos os casos abaixo da média. Mas é certo que o coração pensa de uma forma que muitas vezes nos ultrapassa e eventualmente verá coisas que nós, mesmo com um olhar atento, não seremos nunca capazes de ver.
Daremos este benefício de dúvida a Dola Calores, e prossigamos: desde essa altura, já lá vão sete anos, data em que a Mulher-a-Dias ali ingressara, que o seu pobre e acalorado coração estremece sempre que passa ou pensa no Prior. Tantas as crises de choro que Dona Pranto já presenceara por parte da amiga, sempre incapaz de atraír a atenção do distraidíssimo homem. A ideia possivelmente muito lógica de lhe declarar o seu quase psicótico amor não chegou a atravessar-lhe nem que brevemente os planos. Ela preferia decotar-se e falar para ele languidamente. Mas o acto de sedução nem sempre é evidente. Às vezes é mal interpretado.

sábado, 25 de outubro de 2008

capítulo 2

À hora de almoço, Doutor Sade e Doutora Prazeres encaminharam-se com Doutora Crepe e Doutora Devassa para a Travessa Anselmo de Braancamp, muito próxima da dita empresa, mais em específico para um café onde voltaremos algumas vezes ao longo desta história.
No café, já esperavam Doutora Sabida e Doutor Perverso, bem como Veteraníssima Von Sherman e Veteraníssima Von Ingres.
Na mesa do lado, conversavam com um grande ar de intriga Dona Calores e Dona Pranto. Podemos dar as nossas mãos ao fogo se não estão a falar mal de alguém. Alguém que pertence quase de certeza ao Reino de Deus.
Mas os nossos quatro Doutores sentam-se na primeira mesa, e, resp0ndendo às perguntas, relatam a primeira manhã de trabalho, não se coibindo de manifestar a má impressão que tiveram de Conde Azul. As Veteraníssimas abanaram a cabeça. Há mais de 20 anos que trabalhavam naquela empresa, pelo que muito bem conheciam Conde Azul. Avisaram logo que esta péssima primeira opinião, contrariamente ao que por norma sucede, estava certa.
Doutora Devassa, com cinco anos de serviço naquele lugar, era particularmente crítica em relação ao vice presidente do sexo masculino. Claro está que esta repulsa toda não se devia exclusivamente ao facto de o considerar um mau profissional, além de muito inchado e pouco capaz. Devia-se, principalmente, ao facto do Conde Azul a ter tentado seduzir de uma forma tão declarada e infantil que só com muita ajuda da Santa Teresa de Ávila conseguiria ser bem sucedido. Mas já se sabe que no que toca a factos reais, os santos não têm grande disponibilidade.
Doutor Perverso também não era um fã de Conde Azul. Antes deste último ir parar sabe-se lá como ao Reino de Deus (A escalada até ao poder é feita por escarpas tudo menos óbvias e claras, na maior parte das vezes.), trabalhara de perto com Doutor Perverso que é talvez quem mais pode falar da incompetência deste superior que parece ser, afinal, tão inferior.
Enquanto almoçavam, os doutores mais experientes e as Veteraníssimas iam relatando várias histórias relativas ao Reino de Deus e às Mulheres a Dias, se bem que o faziam num tom jocoso e não num tom intriguista como as donas na mesa atrás, que ainda não pararam. Doutora Sabida não quis perder a oportunidade para explicar, por exemplo, como uma vez, durante uma apresentação de um projecto dela, Conde Azul dissera, sem vir muito a propósito
_Eu tenho uma caixinha de Chocapic em casa, para quando as minhas amigas lá vão dormir...
Mas, interrompemos a descrição das conversas do almoço precisamente para relatar a entrada, nada mais nada menos do que do próprio Conde Azul, e espero que o leitor não fique desiludido pelo facto de, à sua entrada não haver foguetes nem trombones.
Não, apenas uma porta que se abre , e entram este homenzinho muito moreno e totalmente vestido de preto, o que não é grande ideia, a falar muito alto, de forma extremamente exibicionista, para Madre Boca do Mundo, a sua acessora que o acompanha
_Gastei 500 euros numa colecção de filmes italianos...
diz, quase aos berros. Algumas pessoas do café olham, mas na mesa destes nossos doutores e das Veteraníssimas, havia como que um acordo silencioso de não dar atenção àquela metamorfose sem Kafka. Afinal de contas, a atenção inteligente não é para quem a quer, é para quem a merece.

sábado, 18 de outubro de 2008

capítulo 1

A primeira vez que Doutor Sade chegou à frente do edifício, demorou-se um pouco a olhá-lo. Era o típico complexo industrial do século XIX, escondido atrás de grades cinzentas cobertas de uma ferrugem triste. Mas ele acabou de fumar o seu cigarro, avançou o átrio e entrou no edifício. Logo ali, cruzou-se, sem reparar, com Barão Vermelho.
Há alguns meses, encontrara Veteraníssima Von Sherman em Espinho, onde sempre passavam férias e onde, de resto, se tinham conhecido através de uma amiga comum, e ela falara-lhe do Barão Vermelho. Tinham-se encontrado certa tarde numa das esplanadas da praia, quando Doutor Sade dissera à amiga que pretendia ingressar na empresa onde esta há vários anos trabalhava. A conversa sobre Barão Vermelho, o mui respeitado director da empresa, surgira aí. Von Sherman traçou o retrato do homem que, apesar da sua austeridade, tinha uma enorme queda para o alcóol. Não caía dentro das bebidas, as bebidas é que, de alguma forma, caíam dentro dele, mais precisamente da sua barriga que, não ao acaso, começava a ficar protoberante. Mas o que de interessante havia neste vício era o seu resultado: a revelação de uma espantosa veia literária. Sentado nos tascos, nos bares ou nas boîtes, Barão Vermelho, que na altura não tinha o cargo que agora tem, redigia imaginosos contos onde não deixava de ser óbvia a leitura prévia de Poe e de Kafka. Enviava-os depois aos membors da direcção, anonimamente. Estes, ao ler nestes horrores terríveisd ameaças apressaram-se a apresentar a demissão. Uma oportunidade de chegar à principal cadeira do Reino de Deus, nome pelo qual eram conhecidos os três gabinetes de direcção, que Barão Vermelho soube aproveitar como um lince ligeiro.
Veteraníssima Von Sherman proposera a Doutor Sade um encontro com Freira Laica, outra das directoras cuja história mais à frente conheceremos, mas, um tanto deinteressado, Doutor Sade regressara ao Porto poucos dias depois deste encontro.
De qualquer forma, agora que entra pela primeira vez, Doutor Sade nem repara em Barão Vermelho, pois logo avista Doutora Prazeres, amiga de longa data e seu par como debutante. Estavam adiantados na hora, pelo que ainda puderam trocar algumas palavras que não vale a pena reproduzir. No entanto, foi tempo suficiente para verem entrar Dona Pranto e Dona Calores, duas das "mulheres-a-dias", assim chamadas por só períodicamente terem que se deslocar á empresa.
Este primeiro dia serviu para, guiados por Conde Azul, de quem iremos ouvir falar, ficarem a conhecer o funcionamento e as instalações da empresa, tendo avistado tudo, desde o Reino de Deus às salas das Mulheres-a-Dias, além de terem sido apresentados ao primeiro projecto em que iriam trabalhar, em conjunto com Doutora Devassa e Doutora Crepe, que ambos já conheciam há muito.
Destas pessoas falaremos de seguida.